segunda-feira, 29 de junho de 2009

Alguma coisa esta fora da ordem” (Caetano Veloso)

Coerente com o “modelo econômico” de muitos anos, as cidades se desenvolveram promovendo o uso e permitindo abuso do automóvel. Presencia-se diariamente a prática, efetivamente desordeira, de expropriação dos direitos dos pedestres. Calçadas e faixas de travessia são indevidamente invadidas, muitas vezes, inviabilizando a circulação a pé, para não falar nos carros de bebê e nas cadeiras de rodas.

Ontem (25/06/2009), no Centro, entrei na Rua do Rosário, no trecho entre a Avenida Rio Branco e Primeiro de Março. Percebi que havia muitos carros estacionados na calçada, mas resolvi seguir por ela. Então, um desses carros grandes, subiu na calçada avançou na minha direção. O motorista olhava como se eu estivesse fazendo algo errado, mas prossegui firme no meu caminhar. Quase fui atropelado.

Fiquei confuso: estaria realmente caminhando numa calçada ou ali era um estacionamento? Virei na esquina da Rua do Carmo. A primeira metade da calçada fora tomada por um carro, que colocara duas rodas sobre ela, porque não havia espaço para colocar as quatro, dado que a segunda metade da calçada havia sido ocupada pelas grades do edifício da esquina, que transmutara o espaço público em espaço privado.

Aconteceu de novo: uma motocicleta, circulando na calçada quase me atropelou. Passei a caminhar pela parte da rua supostamente destinada aos automóveis. Veio um carro e buzinou indignado. Restava supor que naquela parte da cidade só era permitido andar sobre rodas.

Sentindo-me um estrangeiro em minha própria casa e um tanto desnorteado, prossegui até chegar à esquina com o Beco dos Barbeiros. Ali, um fiscal da prefeitura, apoiado por um policial militar impunha ordem urbana a barraca de um camelô aleijado. Como a cena proporcionava certa comoção aos transeuntes, procurei me informa junto ao fiscal sobre o que estava acontecendo.

Ele esclareceu que a barraca do camelô excedia as dimensões autorizadas (possivelmente algo em torno de 20 cm de cada lado da barraca) e que por isso estava obrigando o camelô a entrar na ordem urbana. Disse tudo com certo orgulho.

O camelô não tinha as pernas, ou melhor, só às tinhas até os joelhos. Por isso se deslocava, de um lado para o outro, com enorme dificuldade e aflição. Quando precisava se dirigir ao fiscal, pessoa de estatura mediana, o camelô tinha que, ao mesmo tempo, olhar para o céu.

Formou-se um quadro absolutamente constrangedor: um homem, que usava sapatos nos joelhos, caminhava aflito de um lado para o outro, tentando adequar a barraca a exigência do fiscal.

Quem estava por perto e via, não gostava. A cena era absolutamente antipática e por todo lado se ouvia o desagrado de quem passava.

A experiência evidenciou um tratamento diferenciado para automóveis e camelôs: “Aos automóveis tudo, aos camelôs a lei”.

Evidenciou também que a política de ‘ordem urbana’, não é populista, não é movida pela busca do apoio popular. Mas, nos dias de hoje no Brasil, apoio popular não é a única coisa que os políticos procuram angariar.

Comentando comentários II

Senhor Mauricio;

Não entendi porque o Senhor se declarou anônimo e depois assinou o cementário. De todo modo o Senhor tem razão.

Os estádios ligados a clubes, como São Januário, no Rio de Janeiro, aparentemente funcionam todos os dias. No entanto, não podemos esquecer que: 1) os estádios dos quais trata o artigo são estádios públicos, destinados as grandes competições; 2) que estádios são programas que induzem as situações de densidade flutuante, o que não contribui para a sustentabilidade urbana; 3) em geral os projetos de estádio, inclusive os estádios de clubes, assim como os shoppings centers dão pouca atenção à dinâmica da rua, oferecendo a cidade, quase sempre, bordas que abrigam como únicas atividades, as bilheterias para venda de ingressos. Essa face cega contribui para reduzir o dinamismo da rua, o que não é bom.

Abraços,

Leonardo

domingo, 21 de junho de 2009

Vai com calma que é na Lapa.

Este título poderia ser nome de um bloco de carnaval. Mas também poderia ser uma recomendação às equipes envolvidas no choque de ordem, que se promete dar na Lapa, no dia 24 de junho.

Os tratamentos de choque deixaram de ser recomendados para indivíduos considerados loucos, por serem desumanos e não ajudarem a cura. Tratar às cidades a base de choque parece ser ainda pior.

As cidades são muito complexas e muito dinâmicas e o conhecimento disponível sobre elas ainda é bastante limitado. Alguém já disse com sabedoria: “Quando não se sabe bem o que se está fazendo, o melhor é ir devagarzinho”.

A recuperação do centro do Rio tem como seu caso mais significativo a revitalização das atividades de lazer cultural na Lapa. Processo cujas características contrariam os modelos e doutrinas contemporâneas sobre a reabilitação de áreas centrais.

O que mais interessa relatar aqui é que essa revitalização não se baseou em qualquer estratégia de enobrecimento da área (gentrification). Preocupados com a cultura da cidade, constatando a quase inexistência no centro do Rio, de casas de espetáculo, onde se pudesse ouvir e dançar um samba, alguns empresários encontraram nos imóveis relativamente baratos da Lapa uma oportunidade para seus empreendimentos. Para um maior conhecimento sobre o processo da Lapa, vale ler o livro de Micael Herschann, “Lapa, cidade da música”.

Pouco a pouco, a juventude aderiu ao processo e micro-empresários do mercado informal, chamados de camelôs, também estabeleceram ali seus negócios. Na medida em que esses usuários da Lapa ocuparam os botecos de porta aberta e as calçadas, as ruas ganharam vida e se tornaram seguras.

Os jovens costumam dizer que é possível viver uma noite agradável na Lapa, consumindo um “Mc Lapa Feliz” * e rachando uma cerveja com os amigos.

Assim, as pessoas com mais recursos, quando saem tarde da noite das casas de espetáculo, que cobram ingressos que os mais pobres não podem pagar, encontram a rua cheia de gente jovem que, além de embelezar e alegrar a paisagem urbana, garante a segurança do espaço público, com uma eficiência que supera em muito qualquer operação policial.

É, portanto, sob a aparência de desordem, que se encontra a segurança: um dos elementos chaves no processo de revitalização da vida noturna na Lapa. Depois que o processo ia muito bem e a Lapa passou a ser vista como um bom negócio. Então alguns capitalistas do setor de bares, restaurantes e casas noturnas começaram a abrir filiais na Lapa.

Para pensar o processo da Lapa e Praça XV, vale recuperar a diferença entre empresários e capitalistas que o teórico da economia, Joseph Alois Schumpeter**, construiu, buscando compreender o papel da inovação econômica, nos processos de superação de crises e retomada do desenvolvimento.

Afirma Schumpeter que é fundamental distinguir os empresários dos capitalistas, para entender como se dá os processo de inovação e retomada do crescimento econômico. Capitalistas são pessoas avesas ao risco, conservadoras e só se interessam por seus negócios como fonte de lucro. Em situações de crise, preferem a certeza do rendimento finaceiro. Já empresários são temerários e visionários, que se envolvem com negócios de novo tipo, movidos mais pela paixão, que pelo desejo de lucro. São eles transformam potencialidades em realidade.

Resumindo: Lapa revitalizada não é um produtos dos modelos contemporaneos de reabilitação urbana, impregnados de “racionalidade neo-liberal”. Ela resulta da ação de médios empresários, apaixonados pela música brasileira; dos sambistas e dos jovens, cansados da imposição de produtos culturais globalizados; dos boemios que valorizam o patrmônio cultural urbano; de micro empresários do setor informal, dotados de imaginação, criatividade e vontade de trabalhar.

Intervir na Lapa com base em idéias conservadoras pode trazer péssimos resultados para a revitalização do Centro. Só pode agradar aos que, equivocadamente, imaginam que, um dia, o Centro do Rio vá se deslocar para a Barra.

Esclareciementos:
* Mc Lapa Feliz, também conhecido como X-TUDO, é uma refeição que contem uma linguiça, maionese, batata frita, petit-pois, milho, cebola, tomate, pimentão, servidos dentro de um pão de tamanho genroso, sendo, potanto, assemelhado a um sanduiche.

** Schumpeter, era economista, mas deu aulas de antropologia na universidade.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Se beber não dirija

O slogan está espalhado pela cidade. Se beber vá de táxi, ônibus ou metro. A campanha é importantíssima: se destina a salvar vidas da morte, da invalidez, da culpa. Merece todo apoio e adesão.

Por isso mesmo é preciso, porém, assinalar que essa campanha padece de um dos males do tempo. Vivemos numa época quando empresas e governos preferem investir em propaganda, a investir na qualidade dos produtos e serviços que oferecem.

A campanha tem seus cartazes nos ônibus, nos táxis, e no metro. Mas na madrugada os ônibus são desconfortáveis, inseguros e raros, os táxis são caros e o metro, como se fosse a Cinderela, some depois da meia-noite.

Essa campanha poderia ampliar seu alcance se existissem órgãos públicos implementando novas soluções para o transporte para as áreas e nos horários de boemia da cidade; e com autoridade suficiente, sobre o sistema de transporte público, para viabilizar a oferta de transporte, de qualidade, considerando as características sócio-econômicas do público alvo da campanha, ou seja, os proprietários de automóveis.

Numa cidade, como o Rio de Janeiro, que se pretende turística e onde a vida noturna mostrou-se capaz de revitalizar áreas importantes da cidade, era de se esperar que essas soluções já existissem. Mas não é o que acontece.

É claro que, há quem veja na campanha “se beber não dirija” um caminho para retirar os pecadores das mãos de Dionísio. Associam a boemia ao alcoolismo; e o alcoolismo a violência e a degradação humana. Mas as situações de violência e degradação humana, associadas ao alcoolismo, começam, o mais das vezes, no botequim da esquina, ou dentro de casa.

Esquecem que a boemia é, na cidade, a festa da poesia, da música, da amizade, da urbanidade. É a esfera pública em confraternização. A boemia é a manifestação social que conduz a cidade em direção a civilidade.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Cidades e estádios – a copa de 2014.

Os estádios ocupam lugar de destaque nas cidades desde o Coliseu em Roma. Não só por serem um espaço destinado a reunir multidões, mas também porque sendo equipamentos urbanos de grande porte, sua monumentalidade traz implicações significativas para a paisagem urbana.

Mas da Roma Antiga aos tempos de agora, o urbanismo evoluiu bastante. Sabe-se que estádios são equipamentos urbanos que passam a maior parte do tempo fechados, ociosos. Aos justos festejos por terem sido as escolhidas para sediar os jogos da copa de 2014, as cidades precisam adicionar, portanto, um pouco de atenção com as implicações que os projetos de remodelação dos estádios vão trazer para o seu cotidiano.

Para que o dinheiro público - dinheiro das cidades, dos cidadãos - seja bem aplicado, não basta que o estádio seja bom por dentro. Não basta que seja bom para torcedores. Não basta que seja bom para FIFA. É preciso seja bom para a cidade; é preciso que seja bom para os bairros, onde se localizam; é preciso que seja bom para os moradores da sua periferia; é preciso que seja bom no cotidiano das cidades e não apenas nos dias de jogos; é preciso que seja bom todos os dias de todos os anos e apenas durante o evento da copa.

O projeto de arquitetura e o projeto de inserção urbanística desses estádios devem, portanto, atender essa a perspectiva. Para que as bordas desses estádios não se tornem lugares ermos, destinados ao delito, suas periferias de contato com a cidade devem ser projetadas para ser lugares do lazer cotidiano dos moradores das cidades, de forma a garantir uso constante e vitalidade urbana dessas áreas, mesmo quando não estejam ocorrendo jogos.

Nesse sentido, esses projetos precisam ser submetidos aos mecanismos de audiência pública, até porque o Estatuto da Cidade prevê a realização de estudo de impacto de vizinhança (EIV), quando da realização de grandes empreendimentos nas cidades. É o caso.

Resumindo: nada contra a FIFA, as agências de viagem, os hotéis e as companhias de aviação. Tudo em favor das cidades. Como dizia o Barão de Itararé: as conseqüências vêm depois. E, como ele poderia ter dito: os eventos passam, as cidades ficam.