domingo, 21 de abril de 2019

Suportes da memória, história dos grupos sociais e o patrimônio.


O patrimônio se constitui em um suporte da memória, tanto da memória inter geracional, aquela que é transmitida entre gerações, como da memória afetiva imediata dos grupos sociais, o que tem relação com o lugar dos grupos sociais na estrutura social e com o tipo de mudança que os processos sociais vão impondo a esses grupos, com quadros de perdas para uns e ganhos para outros. Assim, o mesmo suporte da memória (bem ou prática social tornada patrimônio) pode  representar diferentes afetos para diferentes grupos sociais.

O Cais do Valongo, por exemplo, evoca a escravidão e todo o sofrimento imposto aos que foram escravizados, sequestrados em sua terra de origem e colocados para trabalhar pelo uso da força e da violência, sem garantias dos direitos as liberdades mais simples do cotidiano, como, por exemplo, constituir família e mantê-la junto a si. Um filho ou marido ou esposa, podiam ser vendidos a vontade do senhor.

Naturalmente, grupos vinculados aos afro descentes e grupos vinculados aos escravocratas, tem diferentes perspectivas em relação ao Cais do Valongo e do quanto ele deve ser promovido, reconhecido e apropriado como patrimônio, pela sociedade.

As áreas urbanas de valor patrimonial, ocupadas por um determinado grupo social, que passou por uma expressiva mudança em sua situação social, tendem a também, por isso a conter certa polissemia, isto é, uma multiplicidade de significados associados a elas. Para toda a sociedade representam, formalmente, “o patrimônio”; para os grupos que ali viveram processos de ascensão social, ou decadência, representam um lugar de memória da prosperidade ou da dor.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

SEGREGAÇÃO SÓCIO TERRITORIAL E CULTURA URBANA


Expressão do processo pelo qual o homem, por meio de sua atividade concreta (espiritual e material), ao mesmo tempo em que modifica a natureza, cria a si mesmo como ser social, na história, a cultura se constitui como um conjunto complexo e articulado de códigos, crenças, padrões e normas de comportamento, valores espirituais, identidades sociais e sistemas simbólicos que regulam as ações humanas, individuais e coletivas, no âmbito de formações sócio territoriais ou de grupo sociais específicos. Se desde sempre a cidade surge como expressão do desejo humano de se distinguir da natureza e da coesão de um grupo social que a cultuar amalgamou. A cidade se constitui como uma segunda natureza, um habitat que a sociedade humana criou para si, como resultado de sua existência cultural.

A partir da baixa idade media, com o processo de urbanização que se associa ao desenvolvimento do capitalismo, a vida social tendeu a se tornar cada vez mais vida urbana e a cultura tendeu a se tornar cada vez mais cultura urbana: uma cultura que se associa ao modo de vida urbano e à própria cidade. Uma cultura  que, a partir do renascimento, da produção artístico cultural o caráter de produção de bens e serviços, que se constituem em mercadorias, mas mercadorias muito especiais.

No desenvolvimento desse processo surge a cidade contemporânea, que resulta de um processo de industrialização que associou o desenvolvimento capitalista à formação dos grandes aglomerados urbanos, marcados pela desigualdade social e pelo desenvolvimento dos meios de comunicação entre outros. Assim, as metrópoles e grandes cidades da contemporaneidade se constituem, em um só tempo, em espaços da intensificação da comunicação à escala global e marcante da segregação sócio-territorial a escala local. Até que ponto esse processo coloca em risco a própria identidade da cidade?

Como fenômeno que integra o processo de formação histórica dos aglomerados urbanos, a segregação socioterritorial tem como um de seus fatores estruturantes a desigualdade de renda na sociedade. Ainda que outros fatores atuem, quanto maiores as diferenças de renda em uma metrópole, ou cidade, maior será a segregação socioterritorial e o Brasil é um país com uma das maiores desigualdades de renda.

A segregação não se concretiza apenas como fenômeno ligado à renda e aos preços do solo urbano, mas concretiza-se também refletindo a questão étnica e racial, diferenças de escolaridade e outras diferenças sociais. A segregação aparece, portanto, como um processo segundo o qual as diferenças entre grupos sociais existentes na sociedade “tendem a se concentrar” progressivamente “em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole”. (Villaça, 2001: 142)

A segregação se estabelece e se desenvolve na medida das diferenças de sociais. Mas, com o passar do tempo, essas diferenças se refletem na estrutura intraurbana, e então as diferenças que a própria segregação gerou, passam a contribuir para tornar as diferenças na cidade ainda mais profundas. Sem que forças externas venham a interferir no processo de urbanização, a segregação sócio territorial torna-se uma tendência que se autor reforça.

O próprio comportamento dos agentes econômicos no mercado imobiliário busca tirar vantagens da segregação socioterritorial, criando produtos específicos para cada camada social e, no mais das vezes o estado atua na mesma direção. Essa tendência traz implicações para a qualidade do ambiente construído e acaba por se refletir na paisagem urbana, demarcando paisagens urbanas diferenciadas.

Falando sobre a segregação urbana Castells, já 1983, afirmava que “a distribuição das residências no espaço’ reproduz ‘uma diferenciação social e especifica na paisagem urbana, pois as características das moradias e de sua população estão” articuladas no ambiente construído. Assim, a segregação social ganha expressão, significado sociocultural e poder de representação das identidades sociais, na forma urbana da cidade (Castells, 1983: 210)

 Marcado pela geração da segregação sócio territorial, esse mesmo processo de conformação do território dos grandes aglomerados urbanos, foi também o processo formador de uma cultura urbana desses aglomerados. A segregação dos grupos sociais nas cidades acaba estabelecendo relações entre as identidades sociais associadas ao território, por um lado, quando constitui a cultura da segregação, a cultura do distanciamento em relação ao outro, fenômeno ao qual se associam os diversos tipos de preconceito em relação a classe social, cor da pele, local de residência; por outro, a segregação acaba possibilitando a formação de subculturas, em diferentes áreas do território. Finalmente, a própria percepção cultural dos moradores da cidade em relação ao território passa a ser mediada pelo fenômeno da segregação.

 No âmbito da cultura, valores, identidades e sistemas simbólicos associados à produção artístico-cultural, formam um todo articulado e estruturado, de tal modo que não possível alterar identidades sem alterar valores e sistemas simbólicos; ou alterar valores sem alterar sistemas simbólicos e identidades e assim por diante.  Assim, a segregação, como ordenamento social do território enquanto sistema simbólico, também contribui para o processo de formação das identidades sociais e parar conformação das relações intersubjetivas entre os grupos sociais, enquanto sujeitos portadores de identidade, na medida em que associa o tecido urbano das diferentes áreas da cidade a classes e grupos sociais específicos.

 Mas, nesse sentido, também interessa a forma como a segregação se reflete na percepção dos territórios, da paisagem e dos grupos sociais nele existentes, e na percepção daquilo que nos territórios será percebido como de valor cultural. Ou seja, se por um lado, interessa a materialização da segregação no território, por outro interessa, a constituição de um imaginário cultural da cidade a partir da segregação.

 Trata-se de refletir sobre as consequências culturais da segregação e reconhecer que a cultura urbana contemporânea e diversos fenômenos a ela associados tem como estrutura estruturante a segregação sócio-territorial. Entre os muitos aspectos pertinentes a questão da relação entre a segregação sócio territorial e a cultura urbana, nessa sessão livre será abordada, por um lado, o problema das áreas vizinhas aos centros das grandes metrópoles, que reuniram populações segregadas no passado e que, na contemporaneidade, passam por processos de gentrificação, implicando no reconhecimento de um novo modo de segregação; e, por outro, a problemática das especificidades culturais das favelas, enquanto áreas segregadas das cidades.