quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Rio de Janeiro: o tráfico e o efeito colateral do Complexo do Alemão.

Melhor seria deixar aos especialistas o escrever sobre os episódios de confronto, que opuseram polícia e forças armadas à traficantes, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, na região da Penha, no Rio de Janeiro. Os acontecimentos são recentes, as informações disponíveis são poucas, o assunto é delicado.

Mas, mesmo considerando as limitações, é possível abordar a questão recuperando um pouco da história da relação do tráfico de drogas com a política urbana cidade do Rio de Janeiro, tomando como pressuposto que não é possível compreender o que está acontecendo sem compreender o que aconteceu antes, como diria o professor de história.


O TRAFICO DOMINA O TERRITÓRIO

Foi se a partir do final do ciclo de autoritarismo militar, que traficantes de drogas iniciaram uma ação de controle territorial sobre as áreas ocupadas majoritariamente por pobres, na cidade no Rio de Janeiro.

As favelas cariocas haviam crescido sem quase nenhuma obra de infra-estrutura urbana ou prestação de serviços público. Na primeira metade da década de 80, do século passado, a FAFERJ (Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro) tornou-se uma entidade atuante. Com o avanço da redemocratização, num contexto político onde a idéia de remoção de favelas estava derrotada, a expectativa então era que a FAFERJ se tornasse um dos principais atores da política na cidade Rio de Janeiro, enquanto expressão de demandas que não podiam mais ser consideradas ilegítimas.

Mas isso não aconteceu. Na medida em que o tráfico de drogas foi avançando no exercício do controle territorial das áreas onde residiam os pobres as associações de moradores ou foram coagidas, ou foram cooptadas; a organização e a mobilização dos pobres foram sendo desarticuladas.

Assim, os traficantes não só forneciam a alguns membros das classes de maior renda, mercadoria que lhes propiciava experiências existenciais diferenciadas, como também, ao dominar territórios de favelas, exercia uma importante opressão sobre a maioria pobre da cidade, substituindo o regime militar nessa função.

Com isso o trafico passou a representar um importante elemento na regulação da aplicação dos recursos públicos, reduzindo as pressões do conflito distributivo sobre o Poder Público e mantendo, em grande medida, os padrões de investimentos na cidade dentro dos marcos de interesse dos grupos econômicos hegemônicos, constituídos no período anterior.


PRIMEIRO EFEITO COLATERAL: DISPUTA POR MERCADO.

É provável que o domínio territorial seja uma das possíveis explicações para a cartelização do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. O controle do território propiciou a centralização e assim a formação de grandes redes centralizadas de comércio de drogas, mas gerou dois efeitos colaterais.

Por um lado, dado o poder resultante da centralização e do controle territorial, ao tráfico de drogas passaram a se associar outras redes de crimes, como roubos de automóveis, de cargas, de celulares, com aumento da eficiência da ação criminosa; por outro lado, a disputa de mercado, entre as redes cartelizadas de traficantes, tomou a forma de disputa territorial, gerando episódios cotidianos de guerrilha urbana sangrenta.

A disputa armada, entre as redes cartelizadas de traficantes, tornou a cidade do Rio de Janeiro um mercado em expansão para o comércio ilegal de todo tipo de armamento, um lugar promissor para o crime e palco de sucessivos e sangrentos conflitos armados entre as redes do tráfico.


MUDANÇA NO CONTEXTO DE DESENVOVIMENTO.

Mas as transformações sociais prosseguiram e nos anos iniciais do século vinte um, modelo de desenvolvimento se transformou. Com o avanço de um modelo de desenvolvimento que incorpora a sua regulação mecanismos de inclusão social e distribuição de renda, como o bolsa família e investimentos em urbanização de favelas, a funcionalidade política do controle territorial exercido pelo tráfico, como forma de desarticulação das demandas populares, ficou em grande parte esvaziada.

Essa desfuncionalidade agravou-se na medida em que o Rio de Janeiro passou a sediar mega-eventos internacionais, destacadamente o horizonte de realização das Olimpíadas de 2016, incorporando de forma mais consistente o desenvolvimento turístico, como estratégia de desenvolvimento local.

A partir dessa redefinição, com o Rio de Janeiro tornando-se possivelmente a vitrine global da América do Sul, toda a expectativa de negócios lucrativos e de valorização imobiliária, entra em choque com o quadro de criminalidade descontrolada e de batalhas sangrentas de traficantes entre si e com a polícia, nas disputas por mercado de drogas e controle territorial na cidade.

Os mesmos interesses sociais, que viam o controle territorial do tráfico com o olhar leniente, passaram a enxergar a necessidade da mudança. Iniciam-se as operações de eliminação do controle territorial do tráfico, com a ocupação policial de algumas favelas cariocas, por meio da instalação dentro das favelas de UPPs (Unidades de Policia Pacificadora), que se combinam a uma ação mais ampla do Estado, no provimento de serviços e infra-estruturas urbanas, nas áreas ocupadas.


SEGUNDO EFEITO COLATRAL: A CRISE DO COMPLEXO DO ALEMÃO

Numa visão cética, drogas, prostituição e jogo, legal ou ilegalmente, sempre estão presentes nas sociedades e próximas da riqueza e, como as próprias autoridades de segurança reconhecem, as UPPs não tem como acabar com o tráfico de drogas.

Ao retirar as áreas urbanas, onde residem os pobres, do controle territorial do trafego de drogas, o objetivo da implantação das UPPs é desmilitarizar o trafico de droga, retirar base territorial de apoio às ações criminosas, como roubo de cargas, carros e celulares, e desarticular as grandes redes cartelizadas do trafico de drogas, que possibilitam ações criminosas de grande envergadura e convertem o tráfico de drogas em ator político e social relevante.

Assim, na medida em que as UPPs avançaram na cidade, do centro para a periferia, a parcela armada do pessoal envolvido na economia do tráfico, destinada à proteção do território, foi sendo deslocada no espaço. Dado que o quartel general da rede de traficantes com maior presença nessas áreas centrais da cidade, ficava no Complexo do Alemão, não se pode descartar a hipótese de que tenham se deslocado para lá as hordas armadas que faziam a segurança da comercialização da droga.

Nessa linha de raciocínio é possível supor que essa concentração de pessoal armado tenha gerado alguma tensão. Tensão que pode ter se somado à dos comerciantes de armas que identificaram a perspectiva de perda de mercado e à da cúpula da rede do tráfico, em decorrência da perda de controle territorial e das posições de mercado de drogas, que a ela se associam.

Assim, chegasse a hipótese de que como resultado dessa tensão, a cúpula da rede de tráfico tenha buscado uma ação de confrontação com Estado, na linha do que já foi chamado pela historiadora Barbara Tuchman de “marcha da insensatez”.

Deu no que deu.