domingo, 15 de abril de 2012

Breve relato de indignação carioca

Por Clarissa Moreira _ Prof Adjunta da EAU-UFF
 Visita à Marechal Hermes, ontem (13 de abril de 2012), com estudantes. Como chamam os locais – entre os quais eu me enquadro - Marechal é uma espécie de laboratório urbanístico da cidade clássica e da moderna.  Mas conheço o bairro, antes de mais nada, como frequentadora da casa de meus avós paternos. Sempre gostei de passar por lá ou de lá ir, efetivamente. Há algum tempo não retornava.

 Houve mudanças, mas nada que tenha traído ou afetado, de forma inapelável, as qualidades do bairro. Após breve perambulação entre a estação de trem e o Teatro de Reidy, conversamos sobre as necessidades principais da região com um morador atuante na área politico-cultural.

 A divisão inexorável dos bairros pela linha do trem é, certamente, o tema entre os mais desafiantes, ricos, quase poético para urbanistas. Mas ali descobri que, além disso, é mesmo prioritário. Além de ter sido feito apenas um lado de uma rampa de acesso a deficientes físicos (que aliás não existe mais), os moradores «contam» com o «buraco» pelo qual se atravessa quando não se pode ou não se deseja subir mais de 10 metros de escadaria, como única via alternativa. Trata-se de um acesso, pelo que se soube, originalmente restrito à Cedae, para contato com o rio poluído e fétido que ali passa, escondido sob a via férrea.

 Passamos entre este rio sob nossos pés e a linha do trem sobre nossas cabeças. Um deles (rápido e não parador) atravessou o buraco exatamente na hora: proteção zero, barulho ensurdecedor, experiência estética apocalíptica fantástica mas, que, repetida todos os dias, deve ser um pouco desagradável.

 Já na estação estreita, os trens passam muito rápido, não reduzem, como se faz na maioria das estações em outros cantos do mundo. A sensação para os desacostumados é de uma guerra, de um ataque à integridade do frágil corpo humano. Os «habituês» sem dúvida já se fortaleceram e ririam se soubessem (ou riram).

 Não falaria sobre o assunto tão rapidamente se no trem não tivesse sido surpreendida pela campanha da SUPER VIA: Respeito, Gentileza e Educação. Explicação da própria empresa:
“Respeito, Gentileza e Educação são bons e todo mundo gosta. Por isso, a SuperVia promove, a partir da próxima semana, uma campanha educacional com o objetivo de alertar os passageiros sobre algumas regras da boa convivência nos trens e nas estações” ( fonte: http://www.supervia.com.br/blog/?p=551)

 Sem me alongar e sem maiores análises merecidas,  pensei que se deveria convidar os gestores da Super Via a passar - não necessariamente suas vidas inteiras, como tantos cariocas - mas apenas uma semana, que seja, indo e voltando de pontos distintos da linha em horários de pico, tentando sair dali e ir para algum outro ponto no bairro, atravessando, por exemplo, o «buraco» sob a linha do trem (existem outros em outros bairros). Isto sem falar na super-lotação. Depois desta semana, gostaria que se voltasse a pensar em educação, respeito e gentileza de forma mais ampla, onde o usuário seja visto não como um sub-cidadão a educar, mas como um cidadão desrespeitado cotidianamente pela cidade, certamente desde seu nascimento, e provavelmente até a sua morte.

 Aqui vai minha solidariedade aos moradores deste e de outros bairros - bairros que, de modo absolutamente sintomático de um verdadeiro crime urbano, se costuma chamar «subúrbio», mas que não possuem menos qualidade ou mais «suburbanidade» ou problemas que outros bairros da cidade, a não ser dado o desgoverno, o desrespeito e a desigualdade de tratamento pelo poder público (ou seja, pelos cariocas habitantes de outros bairros!). Verdadeiros guerreiros da saga da metrópole que guardam sorriso, humor e um desapego que poucos budistas obtem após anos de treinamento, e se não guardam, quem há de jogar a primeira pedra?

 O pouco caso que governa cidade, estado e país é ainda grande - e seus representantes permanecem desinteressados em oferecer um sistema de transporte digno aos cariocas, mas não tem vergonha de pedir a estes que observem regras de conduta que a própria empresa e governos, historicamente, ignoram. No entanto, vale a visita à Marechal e vale utilisar os trens cariocas (permanecem uma alternativa de transporte mil vezes melhor que o engarrafamento e os ônibus) e reinvidicar maior civilidade, sim, mas, antes de mais nada transformando o trem e a cidade em algo mais respeitoso, educado e gentil.