Expressão do processo pelo qual o
homem, por meio de sua atividade concreta (espiritual e material), ao mesmo
tempo em que modifica a natureza, cria a si mesmo como ser social, na história,
a cultura se constitui como um conjunto complexo e articulado de códigos,
crenças, padrões e normas de comportamento, valores espirituais, identidades
sociais e sistemas simbólicos que regulam as ações humanas, individuais e
coletivas, no âmbito de formações sócio territoriais ou de grupo sociais
específicos. Se desde sempre a cidade surge como expressão do desejo humano de
se distinguir da natureza e da coesão de um grupo social que a cultuar
amalgamou. A cidade se constitui como uma segunda natureza, um habitat que a
sociedade humana criou para si, como resultado de sua existência cultural.
A partir da baixa idade media, com o
processo de urbanização que se associa ao desenvolvimento do capitalismo, a
vida social tendeu a se tornar cada vez mais vida urbana e a cultura tendeu a
se tornar cada vez mais cultura urbana: uma cultura que se associa ao modo de
vida urbano e à própria cidade. Uma cultura que, a partir do
renascimento, da produção artístico cultural o caráter de produção de bens e
serviços, que se constituem em mercadorias, mas mercadorias muito especiais.
No desenvolvimento desse processo surge
a cidade contemporânea, que resulta de um processo de industrialização que
associou o desenvolvimento capitalista à formação dos grandes aglomerados
urbanos, marcados pela desigualdade social e pelo desenvolvimento dos meios de
comunicação entre outros. Assim, as metrópoles e grandes cidades da
contemporaneidade se constituem, em um só tempo, em espaços da intensificação
da comunicação à escala global e marcante da segregação sócio-territorial a
escala local. Até que ponto esse processo coloca em risco a própria identidade
da cidade?
Como fenômeno que integra o processo de
formação histórica dos aglomerados urbanos, a segregação socioterritorial tem
como um de seus fatores estruturantes a desigualdade de renda na sociedade.
Ainda que outros fatores atuem, quanto maiores as diferenças de renda em uma
metrópole, ou cidade, maior será a segregação socioterritorial e o Brasil é um
país com uma das maiores desigualdades de renda.
A segregação não se concretiza apenas
como fenômeno ligado à renda e aos preços do solo urbano, mas concretiza-se
também refletindo a questão étnica e racial, diferenças de escolaridade e
outras diferenças sociais. A segregação aparece, portanto, como um processo
segundo o qual as diferenças entre grupos sociais existentes na sociedade
“tendem a se concentrar” progressivamente “em diferentes regiões gerais ou
conjuntos de bairros da metrópole”. (Villaça, 2001: 142)
A segregação se estabelece e se
desenvolve na medida das diferenças de sociais. Mas, com o passar do tempo,
essas diferenças se refletem na estrutura intraurbana, e então as diferenças
que a própria segregação gerou, passam a contribuir para tornar as diferenças
na cidade ainda mais profundas. Sem que forças externas venham a interferir no
processo de urbanização, a segregação sócio territorial torna-se uma tendência
que se autor reforça.
O próprio comportamento dos agentes
econômicos no mercado imobiliário busca tirar vantagens da segregação socioterritorial,
criando produtos específicos para cada camada social e, no mais das vezes o
estado atua na mesma direção. Essa tendência traz implicações para a qualidade
do ambiente construído e acaba por se refletir na paisagem urbana, demarcando
paisagens urbanas diferenciadas.
Falando sobre a segregação urbana Castells, já 1983, afirmava que “a
distribuição das residências no espaço’ reproduz ‘uma diferenciação social e
especifica na paisagem urbana, pois as características das moradias e de sua
população estão” articuladas no ambiente construído. Assim, a segregação social
ganha expressão, significado sociocultural e poder de representação das
identidades sociais, na forma urbana da cidade (Castells, 1983: 210)
Marcado pela geração da segregação sócio territorial, esse mesmo processo de conformação do território dos grandes aglomerados urbanos, foi também o processo formador de uma cultura urbana desses aglomerados. A segregação dos grupos sociais nas cidades acaba estabelecendo relações entre as identidades sociais associadas ao território, por um lado, quando constitui a cultura da segregação, a cultura do distanciamento em relação ao outro, fenômeno ao qual se associam os diversos tipos de preconceito em relação a classe social, cor da pele, local de residência; por outro, a segregação acaba possibilitando a formação de subculturas, em diferentes áreas do território. Finalmente, a própria percepção cultural dos moradores da cidade em relação ao território passa a ser mediada pelo fenômeno da segregação.
No âmbito da cultura, valores, identidades e sistemas simbólicos associados à produção artístico-cultural, formam um todo articulado e estruturado, de tal modo que não possível alterar identidades sem alterar valores e sistemas simbólicos; ou alterar valores sem alterar sistemas simbólicos e identidades e assim por diante. Assim, a segregação, como ordenamento social do território enquanto sistema simbólico, também contribui para o processo de formação das identidades sociais e parar conformação das relações intersubjetivas entre os grupos sociais, enquanto sujeitos portadores de identidade, na medida em que associa o tecido urbano das diferentes áreas da cidade a classes e grupos sociais específicos.
Mas, nesse sentido, também interessa a forma como a segregação se reflete na percepção dos territórios, da paisagem e dos grupos sociais nele existentes, e na percepção daquilo que nos territórios será percebido como de valor cultural. Ou seja, se por um lado, interessa a materialização da segregação no território, por outro interessa, a constituição de um imaginário cultural da cidade a partir da segregação.
Trata-se de refletir sobre as consequências culturais da segregação e reconhecer que a cultura urbana contemporânea e diversos fenômenos a ela associados tem como estrutura estruturante a segregação sócio-territorial. Entre os muitos aspectos pertinentes a questão da relação entre a segregação sócio territorial e a cultura urbana, nessa sessão livre será abordada, por um lado, o problema das áreas vizinhas aos centros das grandes metrópoles, que reuniram populações segregadas no passado e que, na contemporaneidade, passam por processos de gentrificação, implicando no reconhecimento de um novo modo de segregação; e, por outro, a problemática das especificidades culturais das favelas, enquanto áreas segregadas das cidades.